domingo, 30 de junho de 2013

Falta Coração

A história de hoje ocorreu em meados do ano passado. Eu estava em uma fase ruim (como se eu já tivesse uma fase boa). Encontrava-me falido, recém-desempregado e além disso, assim como outras no país, minha faculdade estava em greve. Estive nesse período quase completamente desplugado do mundo. Foram longos dia de reclusão dentro de casa. Era quase um hospício privado. Naquele momento, toda e qualquer aventura era bem-vinda, por mais esdrúxula que fosse. Independente do resultado, eu teria a oportunidade de ver o mundo e ter contato com outros seres humanos. Eu sei. Muita carência.


Foi no meio de uma dessas aventuras que me surgiu a oportunidade de ir até outra. Estava na recepção de um consultório dentário, no Centro do Rio, quando me telefonaram para uma entrevista de estágio em um campus da minha universidade.  Disseram para eu ir no mesmo no dia. Sem pensar duas vezes fui. Talvez mais pela aventura do que pela vaga em questão.
Deu ruim. O trânsito engarrafado do trajeto Centro-Ilha do Fundão, somado ao meu péssimo senso de direção, me fizeram chegar meia hora atrasado. Na entrevista, fui mal. Estava nervoso e notadamente indeciso sobre a vaga. Além disso, fui "sabotado". Na hora em que fui mostrar ao entrevistador um site que colaborei e que faz parte do meu portfólio, passei por uma situação constrangedora: todos os meus posts haviam sido excluídos. Nunca mais colaboro em sites de desconhecidos. Senti-me como um malandro, com um currículo de realizações falsas. Saí com a certeza de que não conseguiria o estágio. Foi mais uma daquelas vagas que irei aguardar eternamente por uma resposta.


Peguei um dos ônibus internos do campus para voltar. Dentro da condução um pequeno grupo despertou meu interesse: três jovens universitários, de livros em mãos e sorrisos nos rostos. Eram estudantes de Letras que conversavam despreocupadamente sobre trivialidades. Havia uma garota baixinha e magricela com cabelos enrolados que escondiam seu rosto, e outra do seu lado, bonita, morena cor de canela, e cega de um olho. Uma arrumava o cabelo da outra, enquanto na frente delas, o amigo, um garoto cheio de espinhas no rosto, dizia frases cheias de palavrões, algo que, pelo jeito, elas não pareciam se importar. Achei muito bonito. 
Eram três amigos unidos, como há muito tempo eu não encontrava. O retrato fiel de uma amizade sincera entre jovens. O trio de pessoas esquisitas (para os chatos de plantão, substituir o adjetivo anterior por "não convencionais") mais bonito que eu já vi. Poderia até dizer que me caiu uma lágrima ao vê-los juntos, mas estaria mentindo. Contudo, fiquei tocado com a cena. Só de olhar os três senti uma sensação boa. Por um momento, desejei trancar meu curso e ir estudar Letras só para ser colega deles.


Olhava estático para eles. Tive uma epifania. "Falta coração", pensei. Não digo necessariamente comigo. Quis dizer em minha vida, ao meu redor. Ao vê-los, senti saudades da minha época de colégio e olha que ela nem era tão boa assim para mim. Mas comparando com a situação atual, era bem melhor. Pelo menos, havia "coração". Mais alma, mais amor. Mais vontade de conhecer as outras pessoas que, diariamente, compartilhavam o mesmo ambiente. Acho que fiquei mal acostumado. Os dias eram mais brilhantes e as amizades mais sinceras e fáceis de se estabelecer ano após ano. De repente, tornei-me universitário e as coisas mudaram bastante. 
Tenho um hábito semelhante ao da Amélie Poulain nos cinemas. No filme, ela diz que quando vai ao cinema gosta de ficar observando os rostos das pessoas enquanto assistem os filmes. A diferença é que faço isso em todos os ambientes coletivos que frequento. Tenho a impressão de que  eu sei o quanto isso é divertido. A exceção se faz nas salas de aula da faculdade. Tento olhar os rostos ao meu redor e não consigo. A maioria fica enfurnada nos seus tablets e smarthphones


Há pouco interesse em interação com as pessoas. Com a realidade. Acho isso preocupante, e olha que eu sou um misantropo assumido. Mas ninguém parece se importar muito com isso. Todo mundo é maneiro, autossuficiente. Não precisa de ninguém. Tem suas amizades selecionadas fora dali. Eu me reservo a observar tudo de longe. Volta e meia, lembro dos três doidinhos dentro do ônibus de forma melancólica e penso: "Falta coração". 
Acho que os três eram calouros, ainda não contaminados pelo individualismo do homem jovem, moderno e independente. Três espíritos jovens e inocentes, ainda pouco preocupados com rótulosméritos e impressões. Sabe-se lá como estão os três amigos hoje em dia. Espero que bem e unidos.


Invariavelmente, algum dia, chega a hora em que cada um segue seu caminho sozinho. O desmazelamento da sociedade é inevitável. Daqui a pouco estarão colocando seus óculos escuros e roupas sociais, desfilarão com ares de importância, dirão que não têm tempo para nada. Dizem-me que isso é amadurecer. Pode até ser. Mas acredito, com alguma esperança, ser possível amadurecer sem ser babaca. Mais amor, menos máscara.


PS: Volto só em agosto. Abraço!

terça-feira, 25 de junho de 2013

Do Trono Para A Rua

As manifestações que estão ocorrendo em todo Brasil me comoveram. Senti orgulho do povo brasileiro, que enfim saiu em massa pelas ruas em prol dos seus direitos. Nunca fui muito engajado em questões políticas, pelo menos na prática, mas dessa vez, senti-me motivado a sair de casa e unir-me a massa. Participar das coisas. Após a onda de manifestações que ocorreram no dia 17 de junho, tive a ligeira impressão de que junho de 2013 fará parte da história do Brasil. Já está fazendo.
Eu não poderia ficar de fora dessa. Jamais iria me perdoar. Logo, resolvi sair da minha habitual zona de conforto de observador silencioso do mundo. Decidi participar da manifestação do dia 20, que ocorreu no Centro do Rio de Janeiro. Convidei uma garota para ir comigo. Para minha surpresa, ela aceitou. Digo isso porque a conheci faz pouco tempo. Sim. Convidei-a com segundas intenções.



É neste ponto, meus amigos, que as coisas se misturam. Dois de mim foram à manifestação: o cidadão consciente querendo fazer seu protesto de forma pacífica e o pretendente inseguro tentando conquistar a garota. Sendo assim, narrarei minhas peripécias do dia 20 de junho com a cabeça dividida entre estes dois eus. Sei que pode parecer supérfluo falar de um encontro casual em meio a tudo que está acontecendo, mas reitero que meu compromisso é com a verdade, mesmo que ela pese contra mim. De fato, fui dividido.



Combinamos de nos encontrar às 17 horas, no portão da Quinta da Boa Vista que fica em frente à Estação de Metrô do meu (salve, salve) glorioso bairro de São Cristovão. Quando estava perto de chegar ao ponto de encontro, alguém me telefonou. Pelo número, imaginei que fosse ela, mas me enganei: era a mãe da guria. Sem pânico. Ela havia me ligado só para perguntar se eu já havia me encontrado com sua filha. Disse que não, que estava a caminho. “Para onde vocês vão?”, ela perguntou. “Para a manifestação no Centro.”, respondi. Era evidente que ela não fazia ideia de onde a filha estava indo. Ela me desaconselhou a ir até o protesto. “Não vão para lá, é perigoso.” Na hora achei que devia ter ocultado a verdade, dizendo que ia íamos a outro lugar. Mas a lambança já estava feita. Ao menos fiquei com a consciência tranquila. Por fim, ela disse para eu tomar conta da filha dela. Guardei bem essas palavras. Desliguei e me encontrei com a garota.
Minha escudeira era uma descontraída morena, de 19 anos de idade. Ela estava de minissaia jeans, camisa preta e usava piercing no septo nasal, a famosa argola de touro (não quis escrever vaca: soaria ofensiva e essa não é minha intenção). Ela tinha cabelos pretos lisos e olhos claros. Encontrei-a com um cigarro em uma mão e o celular na outra. Nos beijamos no rosto, ela guardou o celular na bolsa, demos as mãos e fomos até a bilheteria do metrô.



Na fila, ela inesperadamente puxou minha barba de bode à la Layne Staley. Gostei. Dentro do vagão, já se notava o clima do movimento. Havia vários jovens com a bandeira do Brasil e rostos pintados de verde e amarelo.



Chegamos ao Centro e o setor de desembarque da estação estava lotado de pessoas. Naquele momento eu só queria sair logo dali. Queria ir para a rua, e não ficar debaixo da terra, imerso a um mar de gente. Só que minha acompanhante iniciou um hábito irritante que se repetiu várias vezes ao longo desta aventura: ela tirava fotos com o celular a todo o momento. As únicas fotos que curti foram as que tiramos abraçados, mais pelo gesto do que pelas fotos. Estimo que o número de fotos tiradas tenha sido equivalente a quantidade de parágrafo neste texto. Portanto, para não ficar repetitivo, façam o favor de imaginar um clique ao término de cada parágrafo. Clique.
Com dificuldade de locomoção, chegamos ate à saída na Uruguaiana. A Avenida Presidente Vargas já estava apinhada de pessoas que saiam da Candelária em direção ao prédio da Prefeitura. Por um momento, ficamos parados na calçada observando aquilo tudo. “Vamos pra rua?”, eu perguntei. Ela balançou a cabeça positivamente e seguimos de mãos dadas.



Em meio à multidão participei de vários coros: xinguei o Ronaldo, o Pelé, o governador Sérgio Cabral, o prefeito Eduardo Paes. Endossei os gritos de “Sem partido!”. Melhor fazer um parênteses nessa parte.
Acredito que quando as pessoas gritaram “Sem partido!” elas só se referiam à manifestação. Eu, pelo menos, queria dizer isso. Certos partidos se aproveitam de momentos como esse para registro de participação e aproveitamento posterior em campanhas eleitorais. Isso tem nome: oportunismo. Sei que alguns partidos de fato se dedicam continuamente a causas similares às dos protestos atuais, mas não pegou bem para eles. Fica a impressão de que eles queriam dar crédito a eles mesmos, sendo que tratava-se de uma manifestação majoritariamente popular e apartidária. Se queriam ostentar suas bandeiras e camisetas avermelhadas deviam fazer isso humildemente em suas sedes partidárias. 
Aí os intelectuais de plantão dizem que o povo não quer partido. Isso tem nome: ditadura. Calma. Não é bem assim, não vamos forçar a barra. Há sim, oportunistas de extrema-direita que tentam se aproveitar desse tipo de discurso, mas a maioria da população não almeja o retorno de um Estado totalitário. Não acho que os gritos de “Sem partido!” estejam relacionadas a ignorância e desconhecimento de história. Acredito que tais gritos tenham sido uma reação emocional. Um descontentamento geral com a classe política, que, diga-se de passagem, faz todo sentido. Diferentes partidos passaram pelo poder e não foram capazes de sanar os problemas da população. O fator corrupção também agrava a descrença nos partidos atuais. Ao invés de olhar para o Brasil, a maioria dos políticos atuais resolveu olhar somente para o próprio umbigo.



É lindo falar em democracia, que todos tinham o direito de participar, mas é necessário ter um pouco de tato. Se mancar. É claro que precisamos de partidos políticos, mas o povo não os queria em sua festa, por pura descrença. A revolta é justificada. Uma reforma política deve ser feita o quanto antes, sem, claro, a extinção dos partidos. 
Em dado momento perguntei a minha cara acompanhante porque ela estava ali. Ela demorou a responder. Por fim, ela me disse que os hospitais públicos a revoltavam. Citou a demora e desumanidade no atendimento. Modéstia parte, a minha pergunta foi boa. Afinal, as pessoas estavam ali pelos mais variados motivos: desde o genérico desejo do fim da corrupção até a baixa no preço de venda dos consoles de videogames no Brasil. Algumas estavam ali por motivo nenhum. Achavam que a manifestação era uma grande micareta.



Quem sou eu para julgar. Todos os anseios devem ser ouvidos. No fundo só queremos um país melhor. Contudo falta sim, organização. Pautas específicas para as manifestações. Caso contrário de nada adiantará. Só haverá barulho, sem mudanças.
De repente, vimos um cavalo de madeira passando do nosso lado. O famoso Cavalo de Tróia. Cometi o pecado (o qual até agora me arrependo) de pensar alto: “O que há dentro do cavalo?”. Um sujeito que estava do nosso lado falou “Espero que seja uma bomba ou atirador para atacar o prefeito.”



Daí em diante, ele foi meu Nêmesis. Ele acabou ficando com a gente a noite toda. Culpa minha admito; mas dela também. Esqueci de mencionar que minha amiga recém conhecida, além de simpática, é uma pessoa que gosta muito de usar um sentido o qual chamamos tato. Ela gosta de ficar o tempo todo tocando nas pessoas e nas suas coisas. Nos alargadores de orelha, pingentes, cabelos, tattoos, e no meu cavanhaque de Layne Staley, claro.
Ela curtiu o visual gótico do cara e começou a tocar nos seus acessórios: o crucifixo, as luvas de couro, o sobretudo preto. Ele era moreno, tinha cabelo crespo e aparentava ter uns trinta anos. Parecia o Toninho do Diabo. Até camisa vermelha ele tinha. Disse ser vocalista de uma banda e ficava o tempo todo fazendo o tipo revoltado-engajado. Não sei o que foi pior: ter que ouvi-lo cantar ou entoar suas frases de efeito. Dizia que sonhou a vida toda com isso. Que tinha participado de outros protestos. Que o gigante acordou. Que daria a vida pelo país (!?). A a outra curtia e dava corda, para meu desgosto.



Não sou namorado dela, portanto não me vi no direito de enxotar o sujeito de uma vez. Afinal, ela estava demonstrando interesse. Acabei ficando na minha, acompanhando a situação. O cara, que não era bobo, aproveitou-se da minha lerdeza e infiltrou-se de vez entre nós. Fomos os três aventureiros pela Presidente Vargas. Deixei-o ganhar espaço e fui passado pra trás. Ele passou a ditar o ritmo das conversas. Na verdade, fui de certo modo excluído: os dois conversavam e eu só ficava ouvindo em silêncio. Vez ou outra eu dizia alguma coisa. Do nada passei de protagonista a coadjuvante. É assim. Quem não faz leva.
Nós três de mãos dadas, em dado momento, me lembrou de uma cena de Death Note em que o L ficava entre o Light e a Misa. Não sei quanto a vocês, mas acho que três é demais. Por um momento desejei ser o Light Yagami, ter um Death Note e utilizá-lo para me livrar de um adversário indesejável. Brincadeira.



Como deu para perceber, não gostei do sujeito. Além do motivo mais do que evidente, achei-o falso. Fabricado. Performático. Ele fazia mais trejeitos do que ator de teatro japonês. Era evidente que agia assim para chamar a atenção dela. Duvido que agisse da mesma forma se continuasse sozinho, como estava antes de nos ter encontrado.



As encenações me davam náuseas. Sorte dele eu ser pacifista. Ou lento, se você preferir. Ele me lembrava o personagem Nigel do filme Top Secret!. Um revolucionário mala, certinho e engajado que disputava com o protagonista da história o amor da mocinha. No fim do filme, ele revelou-se um traidor. Temi pelo pior, mas era só implicância. Contudo fiquei atento. Vai que.



Não sei se senta antipatia por ele porque estava com ciúmes dela ou se eu apenas estava dominado por aquele velho pensamento que temos no Brasil de que quem sai na linha de frente, reivindicando seus direitos, apontando injustiças sociais é apenas um cara querendo aparecer. Acho que eram as duas coisas.
Seguimos. No meio do caminho, próximo a Central do Brasil, vimos um cara de óculos escuros deitado no chão. Ela parou para olhar. O vampirão disse a ela, com ares de sabedoria, que era uma forma de protesto. Podia até ser. O fato é que havia um cara estirado, imóvel no chão. Para mim, ele estava mamado. Pensei em dizer isso para contrariar o Conde Drácula, mas acabei permanecendo em silêncio. Mais a frente, vimos uma multidão correndo. Corremos também. O porquê eu não sei, mas na dúvida corremos. Após isso retomamos o caminho e seguimos em tranquilidade.
Próximo ao prédio dos Correios, havia uma cortina de fumaça laranja. Sugeri desviarmos, mas ela não me deu ouvidos. Preferiu escutar ele e fomos pelo meio da fumaça. Sorte que era só um sinalizador, deixado por algum manifestante engraçadinho. Particularmente, preferia não ter corrido o risco. Se ainda havia dúvidas, ficou claro naquele momento que ela iria escutar ele e não a mim.
Acontece que minha intuição é muito boa. É quase um sexto sentido. Não chega a ser tão eficiente quanto um sentido aranha, mas minha intuição já me salvou de algumas enrascadas no passado. O problema é que minha capacidade de persuasão perante outros seres humanos é nula. Em relação às mulheres é pior ainda. Percebi que, naquela noite, meu superpoder não seria muito bem aproveitado.



Após o fumacê alaranjado, paramos perto de uma mureta próxima a Prefeitura. Tudo em paz, aparentemente. Descansamos um pouco. O cara enfim tentou se avançar para cima dela. Acabou tomando um toco. Eu ri discretamente (e feliz, internamente) e ficamos falando bobagens aleatórias. Resolvemos comprar água, mas ela estava muito cara. Três reais. Mais cara que a passagem de ônibus, pontapé inicial de todas as manifestações. Deu vontade de iniciar um novo protesto ali mesmo.
Pouco tempo depois surgiram uns caras com os rostos cobertos perto de onde estávamos. Uns usavam a máscara do Guy Fawkes e outros uns panos tapando o rosto. Pareciam terroristas armados do Talibã. Eles carregavam uma bandeira com o símbolo da anarquia. Minha amiga, para o meu desespero, quis ficar no meio deles. “Adoro anarquia!”, ela disse. Fiquei com receio, não pelo fato de serem anarquistas. Curto anarquia, mas desconfiarei sempre de pessoas mascaradas. Preferi só acompanhar a distância, sempre de olho nela. Em dados momentos ela demonstrava certa ingenuidade que me assustava. Ou então era só falta de noção mesmo. Felizmente, nada de grave ocorreu.



Nos distanciamos deles e quando nos demos conta já estávamos imersos em outro grupo mais adiante, em cima de um viaduto. O desejo destes eram levar a manifestação até o Maracanã. Era um grupo relativamente pequeno.
À distância vimos a chegada da polícia até a Prefeitura. Não sei bem quem começou, mas de repente vi várias pessoas correndo. Fugindo de bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo. Até a cavalaria chegou. O homem do sobretudo preto ficava bradando “Viva a revolução!” e “Voltem covardes!”, para aqueles que corriam da polícia. Sem chances de voltar. Vimos-nos obrigados a seguir pelo viaduto, em direção a Praça da Bandeira. Um manifestante passou por nós e comentou: “A gente vem manifestar em paz e é assim que eles tratam a gente. Com bomba e cavalo como se a gente fosse bicho. Porque não chegam assim para cima de bandidos?” É, pode ser.



Andamos até chegar próximo ao lado oposto da Estação de Metrô de São Cristovão, onde a aventura começou. Os primeiros pensamentos de retirada passaram pela minha cabeça naquele momento. Falei com ela se ela queria ir embora, mas ela queria ficar. Havia pouco movimento naquela região. Resolvemos voltar para a Prefeitura novamente.
No meio do caminho, na Praça da Bandeira, uma meia dúzia de vândalos causava arruaça, jogando pedras em ônibus. Puxei-a para o lado oposto, mas ela insistia em seguir o terceiro elemento, que claro, fazia seu teatrinho dizendo “Não! Parem!”. Uma ruiva baixinha ficava apontando o bando e gritava para eles a frase da moda: “Vocês não me representam!” Um cabeludo baixinho de óculos tentou dialogar com eles e levou um empurrão dos malandros. Revoltado, ele me viu e me puxou pela camisa. “Você viu o que eles fizeram? Acha certo isso?”, ele perguntou. Disse que não, mas claro, não fiz nada. Irritado ele jogou no chão o cartaz que levava. Fala sério. O que esse cara esperava que eu fizesse? Eu não sou o Batman. Não vou enfrentar um bando de baderneiros. Sou um pacifista. Sinta-se a vontade para me chamar de covarde se quiser. Não me importo.



Agora chega o ponto mais alto de tensão desta história. De repente nos vimos em meio a um impasse. De um lado polícia e do outro um grupo arisco de manifestantes. Tentei puxar ela para uma rua paralela, mas ela parecia querer ficar no meio do confronto. Podíamos ter evitado. Tive vontade de largá-la e me refugiar sozinho. Aí lembrei que falei para mãe dela que iria tomar conta dela. Embora ela fosse maior de idade e tivesse ido por livre e espontânea vontade, me senti responsável já que eu a tinha convidado. Se não conseguia convencê-la, ao menos ficaria por perto. Fiquei.
O amigo dela gritava “Covardes!” para os policiais. A polícia atirou bombas e avançava em nossa frente. Enquanto corria o mais rápido que podia, sentia os efeitos da fumaça das bombas. Meus olhos lacrimejavam e tive uma sensação ruim de queimação na garganta. Refugiamo-nos em uma ruazinha. Pensei que ficaríamos seguros. Mas lá havia um pequeno grupo de manifestantes que revidavam, atirando pedras na polícia que estava, praticamente, atrás de nós. Ficamos em meio ao fogo cruzado de bombas e pedras, escondidos em um pequeno trailer que vendia bebidas.
Quando a situação se acalmou um pouco, corremos adiante, longe do tumulto. Paramos em frente a um bar. Era o único que estava aberto, mesmo assim a contragosto, já que o dono que a todo o momento dizia que ia fechar as portas. Não fechou por causa dos clientes. A situação ali pelo menos estava mais tranquila. No lugar onde estávamos ainda havia algum confronto. Nossa única opção foi esperar.
Para minha surpresa, um homem que estava no bar reconheceu o gótico indesejável. Ele não havia mentido. De fato ele era um cantor. Até o nome dele, o homem do bar acertou. Não tinha importância. Eu estava preocupado com ela. Nervosa, ela fumava um cigarro após o outro. Reparei que a coisa já tinha se acalmado lá na frente e, de novo, pensei em ir embora. “Vamos embora daqui.”, falei para ela. Ela gritou comigo: ”Calma!” Acho que esse grito foi mais para ela mesma do que para mim. Respeitei seu tempo, ficamos lá por mais alguns minutos e enfim saímos.
As ruas estavam vazias. Os dois loucos queriam voltar até a Prefeitura. No meio do caminho encontramos um gordinho de rosto sujo, visivelmente abatido, carregando a bandeira do Brasil. Ele nos disse que havia apanhado da polícia, perto da Prefeitura. O cantor disse com voz de Capitão América: “Não recue. Volte!” O gordinho respondeu: “Cara, no momento eu só quero encontrar minha mulher que eu perdi de vista.”
Chegamos de novo no viaduto que liga a Praça da Bandeira a Prefeitura. Encontramos uma loirinha que estava sozinha. Ela disse que tinha perdido as amigas de vista. Minha amiga se sensibilizou e a convidou a unir-se a nós. Ela assim o fez. Contou-nos que tinha que tinha levado spray de pimenta na cara, mesmo sendo uma manifestante pacífica. Seguimos.
A Presidente Vargas estava vazia no momento em que retornamos a Prefeitura. Parecia um cenário pós-guerra. De longe vi alguns focos de incêndio. Disseram para a gente que haviam queimado dois veículos de emissoras de televisão. Ainda havia manifestantes perto da Prefeitura. Senti uma grande tensão, porque alguns tinham pedras em mãos. Passamos por eles.



Um pequeno grupo se sentou em frente a tropa da polícia. Rapidamente, os três se juntaram a eles. Eu preferi acompanhar de longe em pé, por questão de segurança. Não sou nenhum grande estrategista, mas acredito que se o caldo engrossasse poderia ser pisoteado. “Sem violência!”, o grupo gritava. Os policiais se afastaram e enquanto seguiam em direção ao prédio da Prefeitura foram aplaudidos. O grupo de manifestantes pensou que eles haviam recuado, mas na verdade eles só estavam cercando o prédio. O grupo avançou e se sentou ainda mais perto da Prefeitura. Os policiais começaram a atirar bombas em direção aos manifestantes. Em dado momento, passaram policiais de moto pelo viaduto jogando bomba sem nem olhar quem estava sendo atingido. Olhei e vi que ela ainda estava lá sentada com o gótico e a loira. Foi meu limite. Cai fora.
Não queria deixá-la sozinha, mas resolvi debandar. Sequer me despedi. Era demais para mim. Eu havia saído de casa para fazer parte de um protesto pacífico. Não tinha a menor intenção de terminar meu dia gritando palavra de ordem na cara da polícia, muito menos de ficar me desvencilhando de bombas. Tudo bem que eu fui com uma camisa do Rage Against The Machine, passo a maior parte dos meus dias em berserk mode, mas eu sou de paz. Não fazia questão de ficar com uma minoria, de frente com a polícia, em uma manifestação. Retrocedi a pé para casa.



No caminho, um cidadão alheio a todos os acontecimentos, me perguntou se era seguro prosseguir para o lugar o qual eu havia acabado de me retirar. Era um trabalhador querendo voltar para casa. Disse para ele evitar passar próximo à Prefeitura. Ele me perguntou se o preço da passagem havia voltado ao valor anterior. Respondi que sim. Ele concluiu dizendo que tudo havia acabado. Tentar persuadi-lo, dizendo que ainda lutávamos por outras coisas, como melhorias na saúde e na educação. Mas foi em vão. Não consegui convencê-lo. O assunto deu-se, por ele, como encerrado. Adoraria que fosse simples assim. Infelizmente, não são só 20 centavos, amigo. Não mesmo.

sábado, 1 de junho de 2013

Surfista Prateado

Em um passado recente tive uma vontade repentina de conhecer melhor a história do Surfista Prateado. Conhecia o personagem de nome e de algumas aparições nas aventuras do Quarteto Fantástico. Contudo, desconhecia completamente sua origem. Mesmo assim, sempre curti o visual futurista do Surfista. Ele é um homem prateado que viaja pelo espaço sideral surfando em cima de uma prancha. Não sei vocês, mas essa sinopse para mim é mais do que suficiente para achá-lo maneiro.


Mas isso não basta. Logo, resolvi "estudar" um pouquinho. Assisti a série animada e li uns artigos sobre o Surfista Prateado. Compartilharei as lições aprendidas.
A história do Surfista Prateado é a seguinte: Norrin Radd é um habitante do planeta Zenn-La que salva seu mundo de Galactus, o devorador de planetas. Para evitar a destruição do seu lar, Radd alia-se a Galactus, com a missão  de buscar planetas para alimentar a entidade intergaláctica. Galactus lhe dá poderes cósmicos e assim, Norrin Radd torna-se seu arauto, o Surfista Prateado. Posteriormente, o Surfista se rebela contra Galactus e acaba condenado por ele a vagar sozinho no espaço com seus poderes cósmicos. Ele tenta voltar para casa mas nunca consegue e acaba se metendo em altas confusões. É isso gente. Resumindo, essa é a historia.



Após esse aprendizado curti mais ainda o personagem. Mas acredito que nem todo mundo curtiria o Surfista Prateado. Ele é diferente. Um herói mais voltado para pensamentos filosóficos do que para ação propriamente dita. Deixe-me explicar melhor. O Surfista Prateado tem superpoderes, ele os usa, porém o que mais ficou marcado na minha cabeça foram seus questionamentos existenciais constantes.
O planeta natal de Norrin Radd é um lugar pacífico, sem armas, com um senso de ética avançado. Pode-se dizer que eles têm uma forma de pensamento superior a nossa. Isso faz com que o Surfista, um ser nobre, valente e altruísta, se questione, até mesmo com certa inocência, o motivo de certas ações inequívocas cometidas pelos homens e outros seres hostis que conhece no espaço.
 
 

Isso acaba deixando-o meio infeliz. Estou sendo gentil: o Surfista Prateado é depressivo e mimizeiro. Vive reclamando dos males dos mundos. Até com certa razão. Por isso, eu gostei dele. Ele não segue a fórmula pronta de super-herói. Não só combate o mal, mas também o questiona, assim como outras coisas. O próprio Stan Lee, um dos criadores do personagem, disse em uma entrevista que quando ia dar palestras em faculdades a maior parte das perguntas feitas pelos universitários eram sobre o Surfista e suas reflexões a cerca da humanidade.



Contudo, acho que uma história com esse tonalidade negativa é incapaz de atrair muitos fãs. Lógico que ele é um personagem conhecido da Marvel, mas cá entre nós: ele é mais cult do que pop. Certamente, as crianças preferem ver criaturas prateadas mais animadas.


 
Veja a série animada, por exemplo. Só durou 13 episódios. Assisti todos eles, mas tenho 22 anos. Se eu assistisse a série na televisão em 1998 quando tinha 8 anos, provavelmente mudaria de canal. Criança gosta de ação e humor, daí a expressão "desenho animado", eu acho. Por isso, eu não iria querer assistir o desenho de um sujeito prateado, sempre sério, se lamentando pelo espaço. Melancolicamente, em todo episódio, ele fica falando sozinho que quer retornar a Zenn-La e rever sua amada Shalla-Bal. "Quero voltar para casa." "Quero minha namorada." Não tem quem aguente ouvir isso sempre. Até eu, que gosto do personagem, perdi a paciência de vê-lo reclamando sempre das mesmas coisas.

 
Mas há males que vem para o bem. Enfim pude perceber como isso é chato. Recentemente, uma amiga minha tentou me aproximar de uma amiga dela. Sei lá para que fins. No final, não deu certo. Ela disse que eu era chato, que reclamava demais. Não nego. Esse próprio blog é uma série de reclamações. Só não sei como ela descobriu que sou resmungão tão rápido, visto que nos falamos poucas vezes. Pelo que me lembro do fim, ela me disse: "Ninguém quer saber dos seus problemas". Uma grande ironia: falo tão pouco e quando quero falar encontro justamente alguém que não quer me ouvir. Na hora fiquei com raiva, achei injusto e egoísta da parte dela, mas após assistir a série animada completa do Surfista Prateado percebi como isso pode ser maçante.


Outro problema que compartilho com o surfista é a linguagem. Falamos pouco mas quando falamos... Caprichamos. Até demais. Ele mais do que eu. O desenho era recheado de falas verborrágicas e discursos exagerados shakesperianos. Um falatório por vezes, desnecessário. Por exemplo, em uma cena, um cara perguntou ao Surfista porque ele o tinha salvado e a resposta foi cerimoniosa e de entonação eloquente: "Não poderia ter agido de forma diferente". Ele podia simplesmente dizer "Fiz o que era certo". Seria mais simples e principalmente, mais natural. Por isso, usarei de agora em diante, os formalismos com moderação. 


A verdade é que tenho grande admiração pela figura do Surfista Prateado, pois me identifico com ele. Me sinto sozinho no universo, questiono as coisas erradas que acontecem ao me redor e sofro com meus dilemas pessoais. "Faz parte desse jogo dizer ao mundo todo que so conhece o seu quinhão ruim."
Às vezes temos a impressão de que ninguém se importa, mas na verdade continuamos fazendo parte de tudo. Falsamente pensando que somos especiais, só porque pensamos diferentes. Não somos superiores. Fazemos parte dessa coisa toda, assim como todos. Por mais diferente que sejamos, estamos unidos. Não adianta fugir. Se algo ruim acontece ao meu redor, isso acaba me atingindo de alguma maneira. Afinal, sou humano, sinto empatia.
Tenho que parar de agir como um vigia que só olha, olha e não faz nada. Aprendi com o Surfista Prateado que não tenho o direito de me abster de participar do mundo, assim como ele não tem o de se abster de ajudar o universo. Exagerei na comparação? É, eu sei. Mas as intenções são as melhores. 

PS: Vocês acreditam em Galactus? Eu acho que ele existe.